
Perder um bebê dói muito, e perder uma gestação inicial dói muito também. Não é tipo de coisa que dá pra comparar, porque são sonhos estilhaçados, uma culpa enorme e um desespero em tentar entender o que aconteceu e porquê aconteceu. No entanto, alguns casais sofrem ainda mais - os casais com perdas sucessivas. Se perder uma vez é terrível, imagina o medo de engravidar e perder de novo, e esse medo se concretizar não uma vez, mas algumas vezes. Mas por que isso acontece? O que podemos fazer? Existe solução?
Nesse artigo quero jogar um pouco de luz nessa experiência traumática e frustrante. Infelizmente não existem muitos estudos de boa qualidade nessa área e por vezes estaremos navegando em mares não cartografados. Como sempre, deixe sua dúvida! Vou me esforçar em tentar responder todo mundo.
O que é Abortamento de Repetição?
A encrenca já começa aqui. Os estudos nem sempre usam a mesma definição e isso atrapalha muito a compreensão dessa condição e, consequentemente, o tratamento e condução desses casos. As principais definições são as seguintes:
2 ou mais gestações que falharam, documentadas por ultrassom ou exame histopatológico (análise dos tecidos no microscópio). Reparem que não entra o exame do BhCG ou exame de urina/sangue.
3 perdas consecutivas, não necessariamente intrauterinas (ectópicas, por exemplo). Aqui já entra as gestações diagnosticadas por BhCG ou exame de urina/sangue.
Na prática, eu (e a maioria dos médicos que conheço) já começo as investigações com duas ou mais perdas consecutivas, independentemente da maneira como essa gestação foi diagnosticada, fazendo uma mistura das duas definições.
Fatores de risco, causas e chances de acontecer de novo.
Geralmente, os casais que perderam uma ou mais gestações me procuram com duas preocupações: qual é a causa e quais as chances de acontecer de novo. Bem, apesar de ser uma condição muito comum, ela ainda é muito mal compreendida. Para vocês terem uma noção da encrenca, só conseguimos identificar uma causa na metade dos casos! Elas podem ser genéticas, anatômicas, imunológicas, hormonais, infecciosas, ser causada por fatores externos e, raramente, a famosa trombofilia. Vou explorar algumas causas comuns e conhecidas aqui, mas não fiquem chateados se vocês não se encaixarem em nenhuma delas. Como eu disse, nem sempre vamos descobrir ou entender os motivos disso acontecer.
Perdas anteriores. A chance de perder a primeira gestação é de 11 a 13%. Se você já perdeu uma vez, a chance de perder a de novo aumenta para 14 a 21%. E se você já perdeu duas vezes, a chance de perder uma terceira ou quarta vez aumenta para 24 a 29% e 31 a 33% respectivamente. Ou seja, quanto mais vezes você perdeu, maiores são as chances de acontecer de novo.
Mas antes de bater o desespero, esses são os riscos globais e cada caso precisa ser investigado e entendido individualmente. Existem muitos fatores que influenciam nessas taxas, com a idade (quanto mais velha pior), quantidade de filhos (quanto mais filhos pior), se você teve ou não um filho saudável no meio disso tudo (se sim, seu risco cai drasticamente) e a idade gestacional em que ocorreu a perda.
Fatores uterinos. Anormalidades uterinas são responsáveis por até metade das perdas gestacionais!
Septo uterino ou útero septado;
Úteros com malformações;
Miomas submucosos ou com componente submucoso (outros tipo não parecem atrapalhar);
Pólipo endometrial;
Adesão intrauterina (quando uma parede do útero cola na outra, fechando a cavidade uterina);
Insuficiência ou incompetência cervical (não causa perdas antes de 12 semanas!);
Endométrio não favorável;
Gente, é importante ressaltar que ter uma dessas alterações não significa que você não precisa usar anticoncepcional. Você ainda pode engravidar, ok?
Fatores imunológicos. Esse é um campo ainda muito mal compreendido e teórico. Não vou entrar muito em detalhes para não correr o risco de aborrecer vocês com detalhes técnicos. Basta entender que existe toda uma cascata de eventos imunológicos dentro do corpo da mãe que precisam ocorrer para permitir que o corpo dela não identifique o bebezinho que está se formando como uma ameaça. Como tudo isso ainda é teórico, ainda não temos exames ou testes capazes de detectar esses fatores, e na prática não conseguimos interferir nesse processo.
Síndrome Anti-fosfolípide. Já foram estudadas muitas doenças auto-imunes como fator de risco para perdas gestacionais, mas essa é a única doença auto-imune e associada à trombofilia que pode causar perdas gestacionais precoces. Cerca de 15% das pacientes que têm perdas consecutivas sofrem com a Síndrome Anti-fosfolípide.
Fatores hormonais ou endócrinos. Podem ser os culpados por 15 a 60% das perdas gestacionais!
Diabetes. É raro, mas diabetes mal-controlada está relacionada a perdas gestacionais tanto no começo como no final da gestação, entre outras complicações graves.
Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP). A chance de abortamento nas mulheres que sofrem com SOP pode chegar a impressionantes 40%, que é o dobro da população em geral. Ninguém sabe direito a explicação para esse fenômeno, mas parece ser a bagunça hormonal que essas mulheres têm, especialmente o excesso do hormônio LH e andrógenos. O papel da resistência à insulina nas perdas, também muito comum nesse grupo de mulheres, ainda é muito polêmica. Tratar com Metformina não parece melhorar a fertilidade ou diminuir as chances de perder uma gestação.
Doenças da Tireóide. Alguns cientistas até apontaram alguma relação da presença de anticorpos contra a tireóide como fator para infertilidade ou perdas gestacionais, mas ainda falta mostrar uma relação de causalidade. Por outro lado, hipotireoidismo ou hipertireoidismo mal-controlados são causas conhecidas de abortamento, especialmente o hipertireoidismo.
Hiperprolactinemia. Se você nunca ouviu falar dessa doença não fique assustada, ela é rara mesmo. É uma doença que causa um excesso do hormônio Prolactina e tem tratamento.
Fatores genéticos. As causas mais comuns em todas as perdas gestacionais precoces são as anormalidades cromossômicas esporádicas e incidentais às quais estamos todos sujeitos. Chegam a afetar metade dos casos!
Fatores masculinos! Ah, quem disse que os homens não podem ser os culpados nessa história toda? A idade paterna avançada está relacionada aos abortamentos de repetição.
Infecções. Algumas infecções maternas podem causar abortamentos esporádicos, mas não interferem nas próximas tentativas!
Reserva ovariana diminuída. Nem sabe o que é isso? Calma, eu explico. Algumas mulheres não conseguem ovular direito ou possuem óvulos com menos chances de virarem um bebê. É muito comum nas mulheres que estão próximas de entrar na menopausa. O exame para descobrir essa condição é a dosagem de um hormônio chamado FSH no terceiro dia do ciclo menstrual.
Doença Celíaca. Só os casos sem tratamento adequado, mesmo leves, estão relacionados à infertilidade e perdas gestacionais.
Mitos sobre abortamentos de repetição.
Como esse é um assunto que causa muita angústia nos casais e também é uma situação muito comum, surgiram muitas "explicações" e mitos ao redor disso, e algumas crenças caíram por terra conforme foram surgindo mais e mais estudos. Vamos ver alguns mitos e crenças que devem ser abandonados.
Insuficiência de corpo lúteo. A Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva soltou uma nota em 2015 aformando com todas as letras: a "insuficiência" de corpo lúteo não é um fator isolado de infertilidade. Isso porque essa insuficiência é causada por outros fatores e, portanto, não deve ser investigada.
Trombofilia. Existe uma febre em pesquisar e "tratar" trombofilias em mulheres com perdas gestacionais precoces. A verdade é que essa relação nunca foi provada e as evidências apontam exatamente na direção oposta - é improvável que tenham qualquer relação com abortamentos.
"Mas doutor, depois que eu comecei a tomar clexane/enoxaparina eu consegui engravidar!" - Pois é, mas estatisticamente isso tinha grandes chances de acontecer de qualquer maneira. Para te ajudar a entender isso vou fazer a conta ao contrário dos riscos de perder a gestação: as chances de você não perder a gestação na primeira vez que você engravida é de 90%; se você perdeu uma vez, a chance de dar certo na segunda tentativa é de 80%; se você perdeu duas vezes, a chance de dar certo na terceira tentativa é de 70%. Entendeu?
Produtos químicos e estresse. Pois é, nunca foi encontrada uma relação forte entre estresse ou exposição a produtos químicos e perdas gestacionais...
Hábitos e vícios. Obesidade, tabagismo, uso de bebidas alcoólicas e cafeína sempre aparecem como possíveis culpados, mas a relação deles com abortamento ainda é discutível.
Referências
Pra você que quer pesquisar e/ou entender um pouco mais sobre esse assunto, aqui estão alguns estudos em que me baseei para escrever esse artigo.
3 gestações: 1 nasceu com 35+4, 2 aborto com 13 semanas( feto com 6 semanas) e 3 nasceu com 41+4.
Tem uma explicação porque parou de crescer com 6 semanas?
Eu estava sangrando e sentindo dor, e o médico prescreveu dipirona e mandou pra casa, disse que era normal. Procurei uma clinica particular e o obstetra deu o diagnóstico de aborto retido.
Tivemos uma perda e realmente é terrível ..