"Com dor você dará à luz..."

Todas as vezes que leio o relato bíblico da queda de Adão e Eva eu fico emocionado. Não consigo imaginar um Deus zangado castigando com dores a mulher por ter desobedecido, mas sinto um tom embargado com lágrimas anunciando o que aconteceria dali em diante, triste pelo que aconteceu. Mas por muito tempo não foi essa a interpretação oficial desta passagem de Gênesis. A mulher deveria, obrigatoriamente, sofrer por seus pecados e sentir dor durante a gestação e principalmente no momento do nascimento.
Essa foi a resistência e o ambiente que o Dr. James Simpson enfrentou em 1847 ao anunciar sua mais nova descoberta - um gás capaz de aliviar as dores do parto! A história é interessante. Já haviam relatos de um gás capaz de adormecer pacientes cirúrgico e que permitia procedimentos indolores. Revolucionário, talvez até demais. Era uma época em que os cirurgiões se gabavam por operar seus pacientes rapidamente, amputando a perna de um pobre coitado em segundos, enquanto a vítima era amordaçada ou alcoolizada e segurada pelos assistentes, pelo menos seis homens fortes.
O Dr. Simpson se perguntou se não haveria outros gases capazes de aliviar a dor, mas sem deixar o paciente inconsciente. Escocês, ele possuía uma carreira brilhante como obstetra e professor universitário. Dono de uma mente inquieta, foi responsável por vários avanços na arte obstétrica e, pode-se dizer, no reconhecimento dela como uma especialidade médica. Mas ele vivia no século XIX e a ciência não possuía os limites éticos e de segurança como hoje e a ideia que surgiu em sua cabeça nem de longe seria aprovada hoje. Ele resolveu chamar alguns amigos para todas às noites eles experimentarem diferentes gases conhecidos na época para conhecerem seus efeitos no corpo humano.
Anunciaram seus experimentos e convidavam as pessoas a lhes fornecerem amostras de químicos para eles testarem. A única pessoa sensata o suficiente para ver o risco dessa aventura foi a própria esposa de James Simpson, que os observava por uma pequena janela da cozinha e não poucas vezes teve resgatá-los de algum gás venenoso. Mas Simpson estava com uma ideia fixa, deveria haver algum composto capaz de retirar a dor do parto sem que a paciente perdesse a consciência e fosse capaz de fazer força para expulsar a criança no momento adequado.
A resposta veio alguns meses depois e quase levou a vida dele. Uma amostra de clorofórmio foi inalada e Simpson a princípio não notou nada diferente depois de cheirar o gás adocicado. Mas pouco depois cambaleou e derrubou um vaso da sala. Sua esposa, cansada das experiências malucas, explodiu com o prejuízo e resolveu aplicar-lhe um castigo: um belo tapa na cara. Simpson não sentiu dor. Pediu a um colega que o esbofeteasse, e com o nariz sangrando, gritava que não estava sentindo dor!
Mas suas descobertas não puderam ser largamente usadas por alguns anos. A igreja não permitia que seus fiéis usassem o medicamento pois a dor do parto fazia parte do castigo divino e aliviá-las era o mesmo que desafiar o próprio Deus! As coisas começaram a mudar depois que a rainha Vitória solicitou que o próprio Simpson e o Dr. John Snow usassem o clorofórmio para aliviar as dores de dois de seus partos. O resto é história.
De lá pra cá surgiram outras opções, mais seguras e mais eficientes. Algumas delas, como o óxido nitroso, ainda são usadas em algumas regiões do mundo apesar de ter sido descoberto seu efeito em 1880. O obstetra e ginecologista Oskar Kreis apresentou ao mundo a anestesia raquidiana em 1900, com o primeiro bloqueio regional realizado com sucesso (na época usavam cocaína!), abrindo um mundo de possibilidades em cirurgias ginecológicas, mas principalmente, de um parto sem dor. Ele morreu 1958.
A cocaína foi rapidamente substituída pela procaína em 1905, mas só se tornou realmente popular em 1942. em 1950 surgia a lidocaína, que usamos até hoje. Na década de 60 surgia a analgesia epidural, mais segura, mais fácil e permitia a livre movimentação da paciente em trabalho de parto. A partir daí a evolução foi muito rápida: anestesistas de plantão 24 horas por dia para analgesia de parto na década de 60, a bupivacaína na década de 70, o uso de opióides na década de 80 e misturas com fentanil e agulhas mais apropriadas na década de 90.
A obstetrícia não seria mais a mesma. Ou não deveria ser. A promessa de um parto completamente sem dor ainda está distante para muitas mulheres, que ainda sofrem sob o peso de uma cultura que as obriga a um sofrimento desnecessário e sem benefícios palpáveis. Para alguns, oferecer a analgesia soa como derrotismo, como se o parto fosse sinônimo de luta, de fibra. Alguns médicos nem sabem como proceder diante de uma paciente que não está urrando de dor.
A analgesia de parto foi uma grande conquista da ciência médica e, pelo menos pra mim, tornou esse momento mais humanizado. Quando vejo uma gestante gritando de dor imediatamente me vêm à mente o episódio no Jardim do Éden, e ao oferecer a analgesia sinto que Deus gostaria que fizesse exatamente isso: aliviasse o sofrimento dessas pequeninas e preciosas filhas dEle.