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Como velas ao vento


Era uma madrugada fria e chuvosa quando vieram bater na porta podre e furada do meu barraco. Depois de quase três semanas trabalhando como médico obstetra voluntário em Madagascar, um dos países mais pobres do mundo, eu me acostumei com os gritos urgentes me chamando à noite. Alguma paciente grávida precisava de mim.


"Docteur! Docteur!" chamava a voz masculina do jovem enfermeiro em treinamento. "Um segundo, já estou indo" gritei em um francês torto. Não falo francês, esse é o problema, nem malagasi, a língua local, mas me esforcei bastante e me virava com um dicionário e algumas palavrinhas mágicas que aprendi com o tempo. Ainda me lembro de algumas depois de alguns anos.


Na época eu estava nas minhas férias de meio da residência, que é como chamamos a especialização em medicina, no meu caso em obstetrícia e ginecologia. Ser um médico missionário na África era um antigo sonho pueril, e vi naquelas férias uma chance de concretizá-lo. Eu já era casado, mas decidi ir sozinho por uma questão financeira e também pelos riscos e perigos que a empreitada representava, afinal, se meter num dos buracos mais pobres da África, sem falar o idioma local e sem acesso a praticamente nenhuma das comodidades da vida civilizada não era exatamente, vamos dizer, seguro. Mas eu me preparei bem. Comprimidos de cloro e filtros para purificar a água, roupas para clima úmido, alguns alimentos industrializados ricos em proteínas e carboidratos, isqueiro e um treinamento em sobrevivência. Me sentia pronto.


Me vesti rapidamente e passei o repelente de insetos antes de sair do meu mosquiteiro. Acendi minha vela para poder encontrar o banheiro e espantar os ratos. Lavei o rosto com água gelada de um balde e saímos em meio à selva em direção ao quartinho que chamávamos de centro obstétrico. Enquanto caminhávamos na clareira eu já conseguia ouvir os gritos da paciente e o começo de algum tumulto. Meu barraco era uma das poucas construções de alvenaria da cidade, e também uma das mais antigas. O hospital fora construído e inaugurado na década de 30 por missionários franceses, que abandonaram o local na década de 50, após a Segunda Guerra Mundial e início da guerra de independência daquele país. Ele ficava na encosta de uma colina, afastado do centro da cidade de Andapa e cercado pela selva do norte de Madagascar.


Era uma noite especialmente escura e úmida. Chovia a dias e o chão estava escorregadio na trilha que geralmente usávamos para chegar dos alojamentos até o prédio principal do hospital, mesmo assim andávamos rápido para vencer os cerca de duzentos metros que faltavam. Aquele era o único hospital da região que tinha alguma coisa parecida com uma sala de parto e um centro cirúrgico. As pessoas caminhavam dias para chegar até nós e muitas vezes vinha a família inteira. No pátio e no gramado ao redor haviam vários abrigos improvisados dos parentes dos pacientes internados, e eles eram responsáveis por providenciar a alimentação desses pacientes.


A sala de parto estava cercada de pessoas, parentes da paciente provavelmente. Ao me virem sorriram e me deram passagem. "Docteur Babakoto" disseram baixinho, como se alguém importante houvesse chegado. Era o meu apelido. Não conseguiam pronunciar meu nome de jeito nenhum. Entrei na sala escura e iluminada por velas. No leito havia uma moça nua, molhada de suor, gritando e contorcendo de dor. A parteira que estava cuidando dela tentou me dizer alguma coisa em inglês, mas nenhuma palavra fez sentido. Rapidamente auscultei o coração do bebê com um estetoscópio de Pinard, que eu juro que deveria ter uns duzentos anos, e examinei a paciente. Nove centímetros de dilatação, transverso, alto e móvel. Pedi uma agulha e com cuidado, escondida entre os dedos, rompi a bolsa de água grossa e enlameada. Gelei.


Em situações assim, no Brasil, eu teria levado ela imediatamente para a cesárea. Mas não estamos no Brasil. Não havia eletricidade, portanto não carrinho de anestesia, nem monitores, nem bisturi elétrico. O monitor era um enfermeiro que media a pressão de tempos em tempos e o anestesista era um outro jovem que infundia uma droga de olho num relógio. Praticamente, era como operar na mesa da cozinha. Levar uma paciente para a cesárea em condições assim era praticamente condená-la à morte. Aqui ainda vale a pergunta "você quer salvar seu bebê ou a sua esposa". Nunca imaginei que teria que passar por isso.


Após o procedimento o bebê começou a descer rapidamente. Cada contração fazia a garota se retorcer na maca. A escuridão iluminada por velas, o cheiro de sangue misturado com suor e fezes, o calor, os gritos, tudo isso fazia a cena parecer um filme de horror. Do lado de fora os parentes começaram a cantar e orar. Aquilo me trouxe paz. A melodia lenta e harmônica inundava o ambiente e tornava a situação mais aceitável. Entre uma contração e outra ela respirava ofegante, olhos fechados, boca molhada de suor. Ofereci um pouco de água que ela sorveu rapidamente. A brisa que entrava pelas frestas nas paredes quase centenárias faziam as velas tremerem. Ouvi o coração do bebê, por enquanto estava tudo bem.


As contrações começaram de novo e o bebê avançou mais um pouco. Aquela agonia logo iria acabar. A parteira me olhava ansiosa. A luz trêmula das velas me fizeram pensar que somos apenas chamas ao vento, que podem se apagar a qualquer momento. Pedi para esquentarem um pouco de água limpa e trazerem panos secos. "Atoseho! Faça força!" eu dizia durante as contrações, "Atoseho!". Aquela moça não deveria ter mais do que uns quinze anos, talvez menos. Na cultura local as mulheres jovens e pobres se casavam com homens muito mais velhos e ricos, e em troca eles sustentavam a família delas. A única condição é que elas deveriam engravidar, ou o contrato seria desfeito. O principal motivo das minhas consultas era exatamente esse: infertilidade. Um pesadelo para quem a família dependia da mesada que o marido mandava. Elas queriam qualquer coisa para serem férteis, até mesmo uma cirurgia - qualquer coisa!.


Uma última força e o bebê nasceu. Um bebê para uma mãe tão pequena cobrou caro para nascer. Haviam muitas lacerações, nenhuma grave no entanto. Ainda bem. Eu tinha poucos recursos para consertar isso depois. A mãe parecia ter desmaiado de cansaço, enquanto isso a parteira dava os primeiros cuidados ao bebê. Ele não estava chorando. Sequei o bebê rapidamente e o envolvi com panos quentes. Usando o Pinard como uma máscara improvisada eu soprava ar para dentro dos seus pulmões. Uma vez, nada. Duas vezes, nada. Na terceira vez me pareceu que ele estava começando a reagir. Na quarta vez ele regurgitou um monte de mecônio e começou a gritar. Os berros da criança interromperam a cantoria do lado de fora e uma senhora entrou correndo na sala. A paciente olhou pra ela vagarosamente e sorriu. Permiti que ela se aproximasse da criança e iluminei ela melhor com uma vela. Meu trabalho ali tinha acabado. Estava amanhecendo e o sol espantava as nuvens de chuva. O cheiro de grama molhada e fumaça dos fogareiros me receberam assim que saí da sala. Um senhor muito sorridente, embora só com dois dentes, me deu uma galinha magra. Foi a primeira vez que não ganhei chocolate ou vinho de presente como médico.



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