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Mudem as estradas!



Essa crônica foi largamente inspirada pelo excelente editorial do Journal of the American Medical Association, que você pode ler gratuitamente aqui.

 

Viver em sociedade é um desafio complexo. Quem já passou pela experiência de assistir uma reunião condominial pode ter um relance do que é viver numa sociedade multicultural apinhada de humanos como a que vivemos. As diferenças são muitas e em todos os sentidos, mas se não houver um mínimo que o senso comum considera "certo" essa sociedade se fragmenta em pequenos grupos, que se enfrentam e se destroem. A ciência e o conhecimento podem nos guiar nesse sentido, mas só até certo ponto. Como aplicamos esse conhecimento é responsabilidade de cada um.


Uma das coisas que a maioria das pessoas concorda, no entanto, é que as coisas que nos tornam doentes ou saudáveis são circunstâncias que nada tem a ver com saúde em si. As clínicas, hospitais e serviços de emergência estão para os pacientes como os mecânicos estão para os carros - eles "consertam" as pessoas, mas não as deixam mais saudáveis ou mais doentes.


Um tempo atrás descobri que os carros vendidos no Brasil tem a carroceria reforçada porque a qualidade das estradas brasileiras é muito ruim. Não só isso, o combustível é de má qualidade, a maneira de dirigir dos motoristas, a qualidade das peças, o nível de exigência do governo e muitos outros fatores contribuem para que os carros no Brasil estejam entre os que mais precisam de manutenção do mundo. É um bom negócio ter uma oficina mecânica por aqui. Com a saúde também é assim. Chamamos isso de "Determinantes Sociais de Saúde".


M. Marmot identificou 6 categorias de circunstâncias que compõe esses determinantes: condições de nascimento e infância, educação, trabalho, condições sociais do idosos, elementos comunitários (como transporte, habitação, saneamento, segurança etc) e amarrando tudo isso um sentimento de "justiça". Claro que existem outros fatores, mas vamos ficar com esses por enquanto. Países de primeiro mundo investem justamente nessas áreas. É a ciência e o conhecimento mostrando um caminho que depende de nós trilhar.


Mas quanto depende realmente de nós? Com a pandemia ficou nítido um problema que já estava aí há muito tempo, mas ninguém dava muita bola. Boa parte da população do Brasil não possui água encanada e nem esgoto, que dirá condições para fazer isolamento social. Das seis categorias citadas antes, a maior parte dos brasileiros não possui nenhuma. É fácil orientarmos as pessoas a comerem de maneira saudável, mas há quem não se pode dar esse luxo. E é exatamente isso, ter hábitos saudáveis é um "luxo" para poucos.


Vivemos mais uma confusão de crises no nosso país. Política, econômica, sanitária, segurança, judicial. Tem para todos os gostos. Agora imagine por um momento que a solução para todas elas não está nas mãos de um poucos, mas que a consciência moral que existe dentro de cada ser humano deste país despertasse e nos levasse a pensar como sociedade, nos guiando às mudanças necessárias. Sim, a maior crise no nosso país é a crise de valores.


Bem, qualquer seriam então essas mudanças? Talvez reconhecer que direitos humanos se estendem a todos os humanos? Cuidar melhor do clima e dos nossos recursos naturais como o ar e a água? Nos esforçarmos para terminar a com a fome? Acho que temos muito o que fazer, mas acredito que o mais importante seja a conscientização coerente. Trocando em miúdos, pregar e fazer.


Em algum momento da minha carreira como médico eu me cansei de ser só o mecânico. Eu precisava fazer mais que isso, e a cada dia eu me esforço por democratizar o conhecimento médico na esperança que ele guie muitas pessoas para fora de situações que as façam adoecer. Espero que essas pessoas também fiquem cansadas de sempre terem que passar na oficinas mecânicas e um dia, quem sabe, decidam mudar as estradas.

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