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Relato de parto - o lado do médico

Updated: Jul 15, 2020



Vocês já devem ter lido um monte de mulheres contando histórias tristes e felizes sobre como foram suas experiências de parto. Mas acho que vocês nunca viram essa mesma história por um outro ângulo: o do médico. Pois bem, enquanto estou aqui vigiando uma paciente em trabalho de parto na banheira e comendo uma gelatina de morango (pelo menos é vermelha), resolvi que deveria contar uma história diferente. Bem-vindos aos meus pensamentos.


Essa história em especial não começa de madrugada. Eu sei, parece que todos os bebês resolvem dar o ar da graça nas primeiras horas da manhã, mas não esse. A questão na realidade é que ele não teve muita escolha. Sua placenta havia chegado num limite da sua capacidade em transmitir os nutrientes para o bebê em crescimento acelerado, e como ele já estava com idade suficiente, resolvemos que a hora de conhecê-lo em pessoa havia chegado.


Internei a futura mamãe naquela noite e solicitei o início da indução do parto. Indução do parto?! Isso mesmo. Seria um parto vaginal, mas teríamos primeiro que convencer o corpo dela que já estava na hora. Esse negócio de induzir o parto é como conquistar uma guria para depois pedi-la em namoro. Você precisa começar pelas beiradas, circulando, sentindo o clima para depois dar o bote. Quando ela estiver convencida de que você é o homem da vida dela começa a fase mais difícil, um longo e doloroso processo que exige paciência, suor e lágrimas. O gran finale vale o esforço.


Pois bem, comendo pelas beiradas, começamos a fase preparatória com um medicamento capaz de amolecer o coração gelado do colo uterino. Como toda donzela que se preza, o colo dessa paciente se mostrou resistente e difícil, mas enfim cedeu depois de três doses. É uma fase meio monótona, confesso. Não há muito o que fazer e não existe um aumento das contrações e nem uma maneira de saber em tempo real se tudo está funcionando. Fora os eventuais chutes do bebê para lembrar o motivo disso tudo, o período de preparação da indução costuma ser meio sem graça.


Mas agora o colo uterino dela havia aceitado a proposta e estava disposto a colaborar com a próxima fase: contrações. A paciente não quis a analgesia a princípio, queria saber o seu limite, queria se conhecer melhor. O trabalho de parto começou lentamente, com cada aperto do útero levando aquela mãe tão alegre a se calar e fechar os olhos em meditação. No quarto, a conversa era interrompida por um silêncio respeitoso a cada poucos minutos. A água quente burburando e enchendo a banheira ecoava do outro lado da sala. O casal estava junto, conectado, envolto naquela atmosfera mágica que só um amor verdadeiro produz. Ele querendo amar, ela se sentindo amada. A mobília hospitalar criava sombras confusas naquela penumbra, mas de alguma forma fazia parecer que o mundo todo se resumia àquele momento.


Preciso checar o coração da sua bebê. É minha responsabilidade assegurar a segurança daquele momento, e para isso possuo poucas ferramentas. Uma delas é permanecer ao lado da parturiente o tempo todo, acompanhando cada contração e cada respiração comprida. Já fiz isso centenas, talvez milhares de vezes. Engraçado que na faculdade não me imaginava sendo um obstetra. Primeiro que eu achava que era intimidade demais, e segundo que tinha pavor de ter que ficar ao lado de alguém tanto tempo. Me arrepiava a ideia de alguém me ligar de noite ou interromper um evento familiar porque precisava de atenção médica - eu queria ter vida! Mas isso mudou quando fiz meu primeiro parto.


Não sei explicar. Talvez tenham sido as lágrimas, talvez a dor ou mesmo o ambiente. O parto não é sensual e o ritual de se tornar mãe é o mais lindo e sagrado do mundo. Cresceu dentro de mim um profundo respeito, e a ojeriza foi substituída por um sentimento de admiração e gratidão. Mesmo assim essa não foi minha primeira escolha e eu só reconheceria meu chamado anos depois. Mas essa é uma outra história.


Ela havia vomitado pela primeira vez. O trabalho de parto não é limpinho. Cheira humanidade e você quase consegue agarrar a coragem e a ansiedade no ar. A natureza nunca nem tentou ser arrumada. A ideia de organizar o mundo em tabelas e números é humana, mas nem tudo pode ser medido ou se conforma a uma régua. O fenômeno de parir uma criança é naturalmente irregular e crescente, e exige respeito e atenção. Às vezes acreditamos que devemos dominar e manipular a situação para se adequar aos nossos caprichos, mas que somos diante da sabedoria natural? Há momentos em que o melhor a se fazer é se calar e observar respeitosamente. Claro, há exceções.


O limite de dor havia sido atingido e ela pediu a analgesia o quanto antes. A essa altura as contrações eram muito fortes e doloridas, mas a dilatação ainda permanecia estacionada. Talvez o controle da dor fosse suficiente para fazê-la relaxar e, quem sabe, permitir alguma evolução. Aumentar os medicamentos para aumentar ainda mais as contrações não fazia sentido algum. Não podemos ter pressa nesse momento e a segurança do parto vem em primeiríssimo lugar. Não, as contrações estavam adequadas, mas talvez o colo do útero precisasse de um estímulo a mais.


A analgesia mudou completamente o clima no quarto. A mãe recostou a cabeça aliviada e tinha um olhar risonho para o marido arregalado. A primeira vez é sempre a mais assustadora. Deixei-a descansar mais um pouco, mas estava disposto a tentar um truque - romper a bolsa artificialmente. O procedimento é conhecido há tempos. Rompe-se a bolsa para aumentar o impacto mecânico do bebê contra o colo uterino, mas também para desencadear uma cascata de reações hormonais que afrouxavam as ligações celulares do colo, facilitando a dilatação. Simples e seguro, por vezes eficiente.


O líquido quente e cheio de grumos escorreu pela vagina para dentro de um recipiente. Líquido claro! Anunciei exultante. Deixei o bebê descer gentilmente com os dedos, garantindo que o cordão umbilical não havia escorregado para alguma posição perigosa.


(continua...)


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