Sala de estar

"Quer conversar sobre isso?" - era assim que minha mãe reagia aos meus ataques de raiva e frustração, geralmente por problemas e situações insignificantes, mas que parecem enormes e sem solução quando se é criança ou adolescente.
Minha mãe se formou em psicologia e acabou enveredando pelo lado educacional dessa arte. Ajudar a compreender dificuldades e superar medos é somente uma pequena parte dessa área, que estuda maneiras de ajudar pessoas, crianças e adultos com dificuldade de aprendizagem, a alcançarem patamares mais altos.
Logo após se formar ela foi atrás de seu grande sonho e, empreendedora, abriu sua própria escola de educação infantil, a "Tropinha". Era a realização de tudo que aprendera na faculdade, e em pouco tempo a jovem psicóloga e educadora de apenas 26 anos coordenava uma escolinha para dezenas de crianças.
Acho apropriado falar nesse momento que minha mãe era uma moça muito atraente e sempre sorridente nas fotos, com uma cara de moleca que preserva até hoje. Meu pai, engenheiro elétrico em formação, não resistiu aos encantos dos cachos da minha mãe e se casaram quando ele ainda não havia terminado a faculdade. Loucuras dos anos 80, acho. Não demorou muito e minha engravidou de mim. E não demorou mesmo! Minha mãe engravidou com apenas 3 meses de casados, e por coincidência do destino (ou não!) eu nasci no mesmo dia em que completavam seu primeiro ano de casados. Foi assim que eu sequestrei todos as outras comemorações de bodas.
Fato é que meu nascimento mudou minha mãe. Ela amava a escolinha e as crianças, mas agora o seu mundo se resumia a um bebezinho chorão que queria mamar a cada uma hora. Ela se viu num dilema terrível. Sabia da importância da presença da figura materna no desenvolvimento dos filhos, mas também desejava continuar realizando o sonho pelo qual tinha lutado tanto! Talvez tenha pesado na decisão dela sua própria história de abandono. Meu avô abandonou a família quando ela contava apenas 2 anos, deixando minha avó sozinha com duas meninas pequenas para cuidar. Eram os tempos difíceis da ditadura militar e encontrar emprego não era fácil, especialmente para quem só tinha estudado até a terceira série. Minha avó batalhou muito, e sempre fez questão de dedicar muita atenção e carinho para as filhas, mesmo depois de turnos exaustivos como operária de uma fábrica de peças automotivas. Ela nunca se casou novamente. Escolheu se dedicar exclusivamente ao futuro das filhas e insistiu para minha mãe ter um diploma universitário. No final, minha mãe me escolheu e me tornei seu novo sonho.
Vocês conhecem a cena. O menino chega emburrado e choramingando, frustrado com alguma coisa, procurando a mãe em busca de alguma solução. Nesses momentos minha mãe me levava para a pequena sala de estar de casa e enxugando minhas lágrimas me perguntava o que tinha acontecido e com paciência escutava minhas lamúrias sem sentido. Ela me ajudava a identificar meus sentimentos e a racionalizar a situação. Por vezes retomava o assunto em algum outro momento para se certificar que estava tudo resolvido mesmo. Esse ritual se preservou por toda a minha infância, diminuindo na adolescência. Mesmo assim, quando eu sentia que precisava conversar, inconscientemente ficava na sala de estar largado, como que implorando para minha mãe vir conversar comigo. Era o nosso momento de resolver as coisas, de discutir, de brigar, de lavar roupa suja, de chorar e de buscar soluções.
Ela nunca impôs essas conversas, mas com muito jeito sempre me conduzia ao mesmo lugar. Ainda vejo ela sentada na ponta da poltrona, pernas retraídas e cruzadas debaixo do móvel e mãos nos joelhos, me olhando fixamente, prestando atenção em cada palavra. Nessas sessões eu falava muito e ouvia pouco na maioria das vezes. Seus conselhos eram sempre dados quando eu permitia, ou implorava. Conversávamos sobre tudo e nenhum assunto parecia estranho ou difícil demais para ela. Nada fazia ela ruborizar. Eram os nossos momentos e eu me sentia acolhido.
Acho que essas experiências acabaram por influenciar minha maneira de praticar a medicina. Me esforço em imitar minha mãe e fazer minhas pacientes se sentirem acolhidas e abraçadas. Não chego nem aos pés dela, mas sempre foi meu sonho que as pessoas que me procurassem se sentissem na sala de estar da minha casa - um lugar livre de preconceitos com uma atmosfera alegre e receptiva, onde o coração pode transbordar e todas as dúvidas e problemas irão encontrar ouvidos atentos e, se possível, respostas.
Obrigado mamãe. Tenho certeza que muito do que sou hoje devo à você. Obrigado por me escolher, por me aceitar como parte do seu mundo e me tornar o seu maior sonho. Estou me esforçando para honrar todas as lutas e lágrimas que um dia eu causei a você, e nesse processo, fazê-las valer a pena.