Um coração para Aitor

Era para ser só mais um plantão. Uma noite fria espanta os pacientes e havia pouco movimento na sala de espera sempre lotada do pronto-socorro do Hospital São Paulo. Eu estava no primeiro ano de residência e a sala de ginecologia e obstetrícia era minha responsabilidade. Sozinho, eu me distraía lendo alguma coisa quando ouvi alguém bater timidamente na porta.
"Boa noite doutor, o senhor está atendendo?" - eu não sabia que minha vida se ligaria para sempre àquele casal para sempre depois daquela pergunta. "Sim! Podem entrar!". A paciente entrou com ombros encolhidos e cabisbaixa e um meio sorriso nervoso. O marido veio em seguida carregando algumas malas de viagem, daquelas grandes e coloridas. Sim, malas...
Como eu viria a descobrir naquela noite, eles haviam acabado de chegar de Barcelona. Brasileiros, moravam a muito tempo na Espanha, onde se encontraram e casaram. Logo ela engravidara para alegria da família, uma alegria que duraria muito pouco. Acontece que o pequenino bebê falhou em formar corretamente o coraçãozinho e sofria com uma doença cardíaca muito rara, a Tetralogia de Fallot.
Os médicos espanhóis a aconselharam a interromper a gestação. A doença era grave demais e, apesar de Aitor não possuir nenhuma doença cromossômica, suas chances de sobreviver eram nulas. "Vocês são jovens! Vocês podem tentar de novo!". Após cada negativa, cada desamparo, decidiram que iriam manter a gestação apesar de tudo. Milagres acontecem, não? Pois um estava para acontecer. Bem, quase.
Alguém lembrou que no Brasil ainda se operavam casos como os daquele bebezinho, e esse alguém redigiu uma carta em castelhano e os orientou a procurar três hospitais: o Hospital São Paulo, o Hospital das Clínicas e a Santa Casa. Eu era o primeiro da lista por mera coincidência. Ou não, né? Eles me olhavam ansiosos enquanto me contavam essa história. Nem tinham ido para o hotel, foram do aeroporto direto ao meu encontro, despreparados para o inverno de São Paulo, pesados como alguém que carrega uma pequena chama numa tormenta.
Realmente, essa é uma condição que pode ser corrigida cirurgicamente, mas mesmo assim não é perfeita e essas crianças costumam ter problemas por toda a vida. Será que aqueles médicos não estavam certos? Será que vale a pena investir em crianças com falhas graves de formação? O quanto isso onera o sistema de saúde e a sociedade? Ideias como estas povoam os argumentos de diversos países europeus que praticam o abortamento. Um feto não merece viver se não for "perfeito"? Não merece amor se tiver sido um acidente?
Meu papel naquela noite foi apenas encaminhá-los às portas corretas em que deveriam bater e nada mais. Continuamos em contato até o nascimento e cirurgia de Aitor que, graças a Deus e à equipe fantástica que o assistiu, ficou bem e hoje é um menino muito ativo e querido.
Nossa vida tem um propósito. Acredito que estamos onde estamos, espacialmente e temporalmente, para servir a esse propósito. Também acredito que por menor que seja nossa interação com outras pessoas, deixamos marcas eternas. Elas podem leves e imperceptíveis, ou profundas e memoráveis. Estamos constantemente marcando-nos uns aos outros. Podemos viver para nós mesmos e morrer na solidão, esquecidos. Ou podemos viver conscientes dos outros, das lutas de cada um, e sem julgamentos ajudá-los em suas caminhadas. Na caminhada daquela família eu fui apenas um detalhe, mas gosto de pensar que fui a fagulha de um grande incêndio. Ninguém vai se lembrar de mim, mas eu vou lembrar deles para sempre.