O dia do ultrassom do bebê é quase sempre um dia muito esperado. Queremos convidar nossa família inteira para o "encontro", aquela espiadinha num mundo ainda preto e branco e todo borrado do bebezinho em formação. A sensação é quase como roubar um brigadeiro da mesa do bolo antes do parabéns. Alguns casais chegam mais nervosos, tensos, ao consultório. Sabem das possibilidades, dos riscos de aparecer alguma coisa e um sonho se tornar um pesadelo. Mas acho que existe uma situação bem pior do que descobrir algum anomalia no bebê durante o pré-natal -- descobrir depois do nascimento, quando todos os exames diziam que estava tudo normal e perfeito. Como isso foi acontecer? Será um erro médico? Como o médico não viu isso antes? Costumo dizer que o ultrassom é como inspecionar um carro desligado. Você consegue checar a disposição das peças, se está tudo no lugar. Consegue inclusive checar a função de alguns componentes, se não há nenhum vazamento, nenhum sistema precisando de manutenção. Mas é só isso. Será que quando o carro ligar ele vai funcionar como esperado? Será que apresentará problemas depois de alguns quilômetros rodados? Então existem as situações em que aparentemente está tudo no lugar, tudo bonito, com um bom desenvolvimento e crescimento adequado, mas a criança tem algum problema metabólico ou disfunção neurológica invisíveis ao ultrassom que só aparecerão depois que ela nascer. E o que dizer de problemas mais estruturais ? O esôfago é um tubo que liga a boca ao estômago. Geralmente ele se parece mais com uma fita do que propriamente um tubo, ficando mais visível quando está cheio de líquido, por exemplo. Falando em líquido, é importante que o bebê engula o líquido amniótico durante a gestação, e é por essa razão que o estômago aparece como uma grande bolha preta nos exames. Mas como todos os órgãos, o esôfago também está sujeito a desvios de formação e pode acabar não cumprindo sua função original. Algumas vezes ele até chega ao estômago, mas também comunica a boca ao pulmão. Outras vezes ele só chega ao pulmão mesmo e mais raramente ele não chega a lugar nenhum. Como uma alteração estrutural tão grave, com um órgão tão grande, pode passar despercebido ao ultrassom? Não será falta de atenção? Recentemente um estudo foi publicado na UOG (revista da ISUOG - https://doi.org/10.1002/uog.22050 ) analisando exatamente essa questão. Os investigadores se esforçaram para encontrar meios de diagnosticar essa condição através de sinais ultrassonográficos antigos e novos em todas as idades gestacionais. O resultado foi frustrante. Apesar do olhar atento e procurar especificamente essa alteração, só um terço das crianças foram diagnosticadas ainda no útero, e dos casos suspeitos 10% passaram sem diagnóstico. A conclusão é que na grande maioria dos casos é impossível detectar essa anomalia antes da metade da gestação e mesmo nos meses finais o diagnóstico é bastante difícil. Como é de se esperar, existem outras condições igualmente difíceis ou impossíveis de se detectar mesmo com exames detalhados e atenciosos. O médico errou o sexo do bebê? O peso de nascimento foi muito diferente do peso esperado? O cordão umbilical tinha um nó que ninguém viu? Uma brida amniótica se enroscou em alguma parte fetal e só foi descoberta tarde demais? Tudo isso pode acontecer e não necessariamente são erros ou incompetência do médico. São os limites do método, as fronteiras do exame. Essas tecnologias estão em constante evolução. Trinta anos atrás era impossível saber o sexo do bebê, hoje conseguimos diagnosticar um bebê com Síndrome de Down em boa parte dos casos. Quem sabe um dia isso não mude, né?