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Do outro lado do muro


Ser médico é possuir um poder impressionante, como se fosse possível controlar o mundo. Você toma decisões importantes todos os dias, que podem mudar completamente a vida de dezenas de pessoas e famílias. Mudamos planos, desconstruímos e construímos castelos e transformamos pessoas. Recebemos elogios e agradecimentos numa frequência nada saudável para o ego de um ser humano comum. Mas não somos seres humanos comuns, certo? Frequentemente estamos certos porque controlamos a informação científica e as respostas para becos sem saída — informação é poder.


Com o tempo essa realidade passa a ser deturpada e o médico corre um risco real de imaginar que é invencível. O trabalho interminável, a possibilidade de ser remunerado por uma simples resposta, os prazeres da reverência e da admiração. Doutor aqui e ali. Ele constrói um muro imaginário onde ele se imagina indefectível, o resto da humanidade implorando por ajuda — elogios são perfumes que devem ser cheirados, e não bebidos.


Minha carreira após o término da residência tomou uma velocidade estonteante. Terminei meu mestrado, fui convidado a me tornar coordenador de obstetrícia numa das maiores maternidades públicas de São Paulo, fui aceito como fellow de um dos maiores nomes da Obstetrícia e da Medicina Fetal no Brasil (quiçá do mundo) e abri minha própria empresa de plantonistas de obstetrícia. Num momento eu era um residente e no outro eu era dono de uma empresa e conversava direto com o prefeito de uma das cidades com maior IDH do Brasil ajudando a construir políticas de saúde pública. Conhecia os principais diretores dos maiores hospitais da capital. Médicos que antes eram meus preceptores agoram meus contratados e colaboradores. Estava caminhando para o meu auge —


Mas precisei pagar um preço muito caro por tudo isso. Minhas noites eram povoadas de pensamentos que insistiam em me manter acordado. O ritmo de reuniões, estudos, aulas e trabalhos não permitiam uma alimentação equilibrada e saudável. Exercícios? No máximo alguns lances de escada. Minha esposa andava pela casa abatida. Faltava-lhe a alegria dos primeiros anos do nosso relacionamento. Não cabia mais ninguém dentro do meu muro. Não percebi (ou neguei, não sei) que minha saúde se deteriorava rapidamente. Ao construir meus castelos eu sacrificava exatamente aquilo que eu estava tentando salvar — e um dia tudo desmoronou.


Começou como uma dor de cabeça que não melhorou com os remédios habituais e procurei um pronto-socorro para receber alguma coisa na veia. Não melhorou. Imaginei que fosse algo no dente, uma cárie ou canal mal-tratado, e fui ao dentista. A dor era tão intensa que pedi a ele arrancasse meus dentes afetados, mas ele preferiu me encaminhar novamente ao pronto-socorro. Bem, novamente para o hospital então, mas aquela situação já começava a me fazer sentir humilhado — como assim eu não estava conseguindo resolver isso por mim mesmo? É só uma dor de cabeça! — fui internado com suspeita de meningite, mas recebi alta alguns dias depois porque melhorei muito com os remédios. O velho Richard estava de volta e pronto para retomar a rotina acelerada de novo.


Foi como se eu não houvesse aprendido e lição e precisava de uma porrada ainda maior para perceber o que estava acontecendo. Desmaiei no hospital onde eu trabalhava e acordei horas depois em outro hospital, saindo de uma ambulância. Todos de máscara como seu eu estivesse com a peste negra. Os exames não eram conclusivos, mas todos tinham certeza de que alguma coisa grave estava acontecendo. Eu ainda tentava amenizar a situação, dizia que logo sairia dessa, mas à noite a infectologista do hospital veio conversar comigo na UTI.


Me lembro muito bem desse momento, quando meus muros desmoronaram. Era o fim da tarde e eu podia ver o céu começando a ficar lilás com o pôr-do-sol. Estava frio, e eu estava nu em meu avental de paciente. Meu braço esquerdo estava ligado a um soro que pingava lentamente fora de ritmo com os ponteiros do relógio da parede. Na mesinha ao meu lado quase todo o lanche da tarde estava intocado pelos enjôos que eu sentia. Minha cabeça martelava, preocupado com o que seria da minha empresa e do meu trabalho enquanto eu estava na UTI. O cheiro estéril do quarto foi interrompido com a entrada da infectologista do hospital e por um breve momento eu consegui ouvir o burburinho do mundo lá fora.


As notícias não eram boas. Educadamente ela me disse que os exames eram inconclusivos mas que a suspeita dela era que eu sofria com uma tuberculose cerebral e o tratamento deveria se iniciar imediatamente. Eu tinha 1% de chance de sobreviver, com algumas seqüelas. É isso. Sinto muito. Alguma pergunta? Todas. Nenhuma.


Meu muro desmoronou. Numa batida do meu coração eu agora estava no chão, implorando por ajuda. Eu estava do outro lado do muro. Na realidade, eu tinha a informação, eu tinha o conhecimento, eu tinha elogios, eu tinha tudo — mas nada disso me ajudaria agora. Eu estava implorando para ouvidos que nada poderiam fazer por mim. Meu muro indefectível baseado na ciência havia caído. Vini vidi vinci, e perdi.


Pois é, às vezes a vida nos dá uma rasteira, e eu havia caído de mal jeito. Mas vou resumir a história. Não voltei a construir meus muros inúteis. Agora eu fazia parte da plebe e senti que pertencia a ela, e o poder que eu possuía - a informação - passei a distribuir de graça, como deveria ser. Decidi que deveria empoderar as massas, e isso me motivou a estudar ainda mais. Por óbvio, não morri. Nem fiquei com seqüelas mais graves que um coração metaforicamente ferido. Não era tuberculose cerebral, mas uma meningite viral causada pelo herpes zoster, o mesmo da catapora, velho conhecido meu. Ainda tive um AVC temporário no mês que fiquei internado pensando na minha vida.


Abandonei meus projetos de empresário e coordenador e me concentrei em ser o melhor médico possível para as minhas pacientes. Por "melhor médico possível" eu comecei a entender que seja um amigo, aquela pessoa com quem você pode sempre contar. Aquele que não constrói muros, mas que os derruba para te alcançar. É isso, agora trabalho com demolição. De muros.

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