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Um médico pode chorar?


Quando eu estava no quarto ano de Medicina eu fiz um treinamento no Hospital Israelita Albert Einstein para comunicar más notícias. É um curso muito bacana, que envolve uma parte teórica, onde aprendemos as bases psicológicas do luto e da comunicação, e também um parte prática com situações simuladas onde interagimos com atores em ambientes reais. Parece uma novela, mas muito mais real — sério, os atores são ótimos. Médicos aprendem a dar más notícias.


Eu colocaria em prática esse meu treinamento ao longo dos dois próximos anos. Estagiei em UTI, comuniquei muitos óbitos, muitas desgraças. Me orgulhava de conseguir manter um distanciamento clínico e ser inabalável diante da situação. Estava convencido de que o médico deveria ser o último a desmoronar emocionalmente. Deixar as emoções tomarem conta significava abandonar a racionalidade e correr um sério risco de tomar decisões erradas. Eu poderia oferecer um ombro e um abraço frio, distante, profissional, nada mais. Chorar? Jamais.

Mas um dia eu chorei. Muito. Orei também. Fiz tudo o que me disseram que eu jamais poderia fazer. Me importei e me envolvi emocionalmente com a paciente. Nunca mais fui o mesmo.


Eu estava de plantão como obstetra no meu último ano de residência. Era o último horário do plantão noturno e logo eu poderia voltar para casa. Tinha sido uma noite relativamente calma, com partos tranquilos, poucas pacientes e sem complicações. Minha barriga roncava e o friozinho da madrugada me roubava o sono. Entre um bocejo e outro eu aproveitava a ausência de pacientes para ler alguma notícia no computador da sala de atendimento quando ouvi a enfermeira chegando com uma ficha.


A paciente era uma adolescente de dezesseis anos magra, sorridente, de cabelos bem pretos e lisos amarrados num rabo de cavalo desajeitado, carinha de sono. Ainda de pijama rosa da Minnie e acompanhada da mãe, ela entrou no consultório muito educada: "Bom dia doutor! Minha bolsa estourou!" - "Ótimo" - respondi também sonolento - "quero seu cartão do pré-natal. Pode tirar a parte de baixo da roupa e deitar na maca atrás de mim".


Era um atendimento meio automático.

Era um atendimento meio automático. Cartão do pré-natal, tira a roupa, deita na maca, examina. "Que horas rompeu sua bolsa?" perguntei enquanto ela tirava a roupa atrás de mim - "Uns 20 minutos atrás, moro aqui perto". Anotei rapidamente o horário, calculei a idade gestacional e fiz mais algumas anotações enquanto ela subia na maca. "Vixi, vai molhar tudo!" - ela tinha uma voz alegre e um pouco ansiosa, de quem sabia que alguma causa importante iria acontecer - "Não tem problema, a gente limpa ..." - interrompi a frase horrorizado. Ela já estava deitada e posicionada, e da vagina dela, pendendo uma alça de cordão umbilical seca, sem vida.


Essa é uma condição de emergência em Obstetrícia e o terror de todo obstetra. Se chama prolapso de cordão e acontece quando o cordão desce pela vagina antes do bebê, que comprime a única fonte de oxigênio dele durante sua descida para o parto. É uma catástrofe.


Num salto eu coloquei a mão inteira na vagina dela e empurrei a cabeça do bebê com força pra cima pra descomprimir o cordão. Comecei a gritar, chamando todo mundo para uma cesárea de emergência. Alguém correu para acordar o outro plantonista e chamar os anestesistas. A menina gritava. A mãe dela estava branca que nem papel.


A enfermeira me ajudou a colocar ela numa maca de transporte e a tirar o resto da roupa no caminho. Tínhamos só alguns minutos e o relógio estava correndo. Eu ainda estava com a mão lá dentro fazendo muita força, lutando contra um útero que contraía querendo expulsar o bebê. De vez em quando eu achava que sentia um pequeno movimento do bebê, o cordão batendo bem devagar. "Devagar demais!" - eu pensei - "preciso tirar logo essa criança!".


"Devagar demais!" - eu pensei - "preciso tirar logo essa criança!".

Quando chegamos à sala de cesárea os anestesistas já estavam prontos. A raqui teria que ser com ela deitada porque eu não podia tirar a minha mão. "O cordão está batendo! O bebê está vivo!". Eu gritava para me convencer também que tudo aquilo valia a pena. A paciente estava assustada e com dor. Perdida. Num segundo ela foi do paraíso ao inferno. De uma hora pra outra um médico meteu a mão inteira na vagina dela, arrancaram a roupa inteira dela, tinha um monte de gente gritando e correndo, o bebê não estava bem. "Ele vai ficar bem?" - ela me perguntava baixinho com os olhos cheios de lágrimas. Não respondi. Eu não sabia o que responder.


Uma enfermeira me substituiu na tarefa de empurrar o bebê enquanto eu corria para me preparar para a cirurgia. Quando voltei o outro plantonista me perguntou se eu tinha certeza de que o bebê estava vivo. Respondi positivamente enquanto abria a paciente. Misgav-Ladach. Técnica de cesárea de emergência. Parto em 60 segundos que pareciam uma eternidade.


O bebê nasceu muito mal, mas vivo, e foi direto para a UTI. A paciente ficou os olhos fixos no teto o tempo todo, perdida em seus pensamentos ou na ausência deles. Parecia que só o corpo dela estava ali. Muda. Não perguntou nada. Não havia mais lágrimas. O cabelo desgrenhado e colado no suor do rosto emoldurava um semblante resignado, enlutado, sem reação.


No fim da cirurgia eu estava exausto. "Você precisa conversar com a mãe dela" - a voz da enfermeira era grave e firme, um chamado à responsabilidade. Acenei com a cabeça concordando. Voltei no consultório e ela ainda estava lá, sentada no meio do caos de líquido amniótico e papéis, segurando a calça rosa do pijama. Ela estava em choque. Boca entreaberta.


"Ela está bem? E o bebê? O que aconteceu?" - ela disparou quando eu entrei na sala. Me aprumei e coloquei minha máscara mais profissional possível, como eu tinha aprendido na faculdade. Por dentro eu me esforçava para engolir meus sentimentos e dar lugar à racionalidade. "Ela está bem e se recuperando da cesárea. Seu neto está vivo, mas em estado grave na UTI". Ela começou a chorar copiosamente. Ofereci um lenço e água, como mandava o protocolo. Me sentei do lado dela para esperar ela parar de chorar. Olhei para a calça rosa na mão dela e pensei que a paciente era só uma criança, uma menina. Que desgraça. Meus olhos começaram a marejar. Que desgraça meu Deus. Não posso chorar.

Não devo chorar. Preciso secar meus olhos.


"Doutor, você pode me abraçar?" — o tempo parou nesse momento. Eu conseguia ouvir meu coração batendo. O olhar dela me implorava por um abraço.


O que aconteceu naquela sala suja, naquela madrugada fria, me transformou pra sempre. Eu deixei de ser só um médico, mas resgatei a minha humanidade. Dali em diante eu teria que conciliar emoção e razão. Abracei ela e chorei muito. Choramos muito. Implorei a Deus pelo bebezinho que tinha nascido. Não era mais um feto ou recém-nascido, era o meu bebezinho, e ele estava mal. Aquela adolescente era mais uma paciente, mas agora ela tinha nome, mãe, família e médico.


O bebê ficou bem e sem sequelas, recebendo alta depois de alguns dias. Aquela paciente se recuperou bem da cesárea e conseguiu visitá-lo e até amamentá-lo na UTI. E esse médico mudou pra sempre. Agora ele chora. Muito.

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